23 de agosto de 2017

Na sala com João Gurgel



No domingo passado me senti como um daqueles privilegiados frequentadores dos saraus musicais do ap da Nara Leão lá no comecinho da Bossa Nova: fui convidado para participar de um inédito "recital" em minha cidade - São Caetano do Sul - nos moldes daqueles encontros que impulsionaram a bossa a virar o que virou. O evento particular ocorreu no ap da minha colega Marisa Dea, professora, assessora e agitadora cultural, bem perto de casa, e trouxe o excelente ator, compositor e hábil violonista João Gurgel. No esquema "passa chapéu no final", Marisa recebeu perto de uma dúzia de convidados para assistir o show intimista com repertório quase todo focado nas músicas do essencial Sérgio Ricardo - compositor, cantor, instrumentista, cineasta, ator, pintor - pai de João. Em meio à pequena mas calorosa e participativa plateia - composta por amigas da Marisa, a maioria pertencente ao professorado, mais eu, meu filho Gabriel - que anda tocando violão/guitarra com gosto - e o amigo Nilton Jorge, convidado por mim - Gurgel surpreendeu pela rapidez com que desenvolveu os bem amarrados acordes de seu pai em conjunção com as letras extensas e discursivas, entremeando cada música com análises e comentários pertinentes, principalmente sobre os temas tratados. Logo fiquei sabendo por ele mesmo que essa desenvoltura se dá pela sua experiência como artista de rua - recitando e interpretando números em ônibus e metrôs do Rio de Janeiro ( ele mora no Vidigal) - embora ele tenha confessado ser tímido por natureza. As músicas para o recital foram muito bem escolhidas, amarrando-se naturalmente uma na outra. Além de 90% das composições assinadas pelo pai, o músico adicionou à playlist a emocionante "Canoa, Canoa" ( de Nelson Angelo e Fernando Brant), um dos destaques do emblemático LP Clube da Esquina 2, de Milton Nascimento (1978), duas composições do experimental e autêntico Metá Metá, grupo paulistano de muita qualidade que mistura jazz com influências africanas ( tanto na música como nas letras, com ênfase no Candomblé). Do repertório de Sérgio Ricardo, destaque para a sempre moderna "Calabouço", "A Fábrica", "Brincadeira de Angola" ( com letra do amigo poeta Chico de Assis), a ecológica "Cacumbu" e algumas composições recentes de muito entusiasmo e vibração. No final da apresentação, sua irmã e também filha de Sérgio Ricardo, Marina Lutfi, com uma voz suave e muito bem colocada, ajudou-o na interpretação de "Calabouço" e "Cacumbu" e emendou uma ótima canção do Metá Metá.
Vale lembrar que Sérgio Ricardo está com bem vividos 85 anos! Ele ia aparecer no recital dos filhos e até quem sabe fazer uma participação em algum número, mas no dia anterior sofreu uma pequena queda ( nada grave) mas que o fez declinar do convite. Fica para uma próxima! Mesmo com sua ausência, ou por isso mesmo, discorremos muito sobre sua carreira, suas composições e sua permanente insatisfação diante da injustiça e da desigualdade, o que o fez durante a vida sempre estar junto daqueles que seguram o lado mais fraco da corda. Viva Sérgio Ricardo! E que venham mais iniciativas como essa da Marisa - que está disposta a muito mais depois que fundou oficialmente seu grupo cultural independente - pois só assim conseguiremos furar o bloqueio dessas megacorporações que controlam o show business e não deixam chegar á tona manifestações culturais independentes e fora do mainstream. Esses recitais em salas, varandas, quintais ou seja lá em que cômodo for é para mim a melhor ferramenta contracultural que temos nesse momento!



Um comentário:

  1. Muito bom, Marcos.
    Que bom que esteve por perto para contar ao público que esse tipo de manifestaçāo existe e tem representado o que há de melhor no cenário pobre da cultura nacional.
    Pobre, nāo por falta de bons artistas, mas por nāo interessar à mídia a divulgaçāo daqueles que nāo se ajoelham às suas exigências.

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